Em 29 de novembro de 2016, um acidente de avião terrível matou 71 pessoas, incluindo muitos da equipe brasileira de futebol Chapecoense, que estava prestes a jogar na primeira etapa da final da Copa Sulamericana. Ex-jogador do clube (2015) e do LOSC (2008-2013), Tulio De Melo voltou para o clube em janeiro para ajudar na reconstrução dele. Ele nos contará a sua história e como foi a sua volta ao Chapecoense.
Eu cresci na cidade de Monte-Claros no Brasil, até aos 11 anos de idade. Foi por volta dessa idade que eu deixei minha cidade, mas ainda não direi para onde…
Eu tenho um irmão mais velho e uma irmã mais nova, a minha mãe era bancária e o meu pai comerciante. Venho de uma família muito religiosa, como muitos no Brasil. O engraçado é que, muitas vezes, tendo um irmão mais velho queremos fazer tudo como ele e é quase sempre ele que nos inicia no esporte. Mas o meu não era tão apaixonado quanto eu pelo futebol, ele era mais fã de basquete e de handball. Então foi na rua e na escola, com os meus amigos que eu comecei a jogar. Como é frequente no Brasil, comecei como jogador de futsal e depois fui para um clube para jogar num verdadeiro campo com 11 jogadores.
Quando era mais novo, pratiquei vários esportes, como basquete, handball, natação, capoeira, karatê e judo, mas na verdade o que eu gostava mesmo era de jogar futebol. Eu queria ser como o Romario ou Bebeto no campo. Como todos os brasileiros da minha geração, tornei-me um grande fã de Ronaldo.
Eu tinha o objetivo de jogar num clube de prestígio mais tarde e um dia os recrutadores do Atlético Mineiro repararam em mim e como eu jogava bem no clube da minha cidade. Eu tinha 11 anos quando eles me ofereceram a oportunidade de integrar o time.
Jogar no Atletico Mineiro foi um sonho que virou realidade, pois era o time do meu coração. Eu joguei lá dos meus 11 anos até aos 19. Durante esses anos eu acompanhei o futebol europeu, mas era muito diferente do que é hoje. Hoje podemos ver todos os jogos de todos os países na televisão ou na internet. Nós acompanhávamos principalmente os jogos da liga italiana e espanhola. Os jogos do PSG também passavam frequentemente na TV graças aos jogadores brasileiros que passaram por lá como o Rai, o Valdo e o Ronaldinho. Assistir estes grandes jogos, de times lengendários, me deu vontade de ir à Europa para fazer uma carreira no futebol.
Se eu não fosse jogador de futebol gostaria de ser médico, mas o meu sonho sempre foi ser um jogador profissional.
RELIGIÃO, UM ELEMENTO IMPORTANTE PARA OS BRASILEIROS
A religião sempre esteve presente nas minhas escolhas de times, vida e no meu dia-a-dia. Para onde eu fosse eu via sinais de que Deus estava sempre presente. Eu confio no meu destino, mas sei que devemos fazer por onde. Não é sentado no sofá sem fazer nada que as coisas vão acontecer, é preciso merecer as coisas. Eu tenho princípios de vida, respeito à todos igualmente independentemente do trabalho, e tenho fé. A fé não consiste em « ver para crer » e sim em « crer para ver ».
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Rezo todos os dias, é a primeira coisa que faço quando acordo. Mas eu aproveito minha vida também, eu faço muitas coisas, não passo o tempo todo na igreja. Mas em tudo que eu faço eu sigo os meus princípios e minhas crenças.
É verdade que a religião é vista e vivida de forma diferente na Europa. Mas eu sou muito aberto, nunca tive problemas com esse assunto. Respeito a crença ou a não-crença de outras pessoas. Conheci especialmente muitos muçulmanos, e hoje em dia tenho amigos de todas as religiões. Devemos aceitar e respeitar a escolha dos outros.
Após algumas temporadas no Atlético Mineiro, fui para a Dinamarca. Eu tinha 19 anos e foi um choque para mim. A cultura é completamente diferente, a temperatura então nem sequer falo. Mas eu estava bem determinado sobre a minha carreira e essa passagem pela Dinamarca foi um trampolim. As dificuldades faziam parte do jogo e eu as ultrapassei dizendo a mim mesmo que todos devem fazer sacrifícios para alcançar os seus objetivos. No final das contas, eu guardo boas lembranças da Dinamarca.
Depois eu joguei na França, na Itália e na Espanha. Adoro conhecer novos países e novas culturas e eu penso que foi isso que me guiou nas minhas escolhas. Os meus planos iniciais não eram esses, mas o destino me levou para lá e eu aproveitei cada experiência, aprendi as línguas de cada país em que passei.
VOLTAR AO BRASIL
Saí do Brasil novo sem nunca ter jogado no campeonato nacional. Fazia 11 anos que eu estava na Europa e pensei que era o momento certo para voltar para casa. Eu tenho um filho do meu primeiro casamento que morava no Brasil, queria me aproximar dele, também foi um dos motivos da minha volta. Um amigo, Vilson (que agora joga no Corinthians) estava jogando no Chapencoense e me disse para vir. Eu fiz metade do
campeonato, tudo correu bem e alcançamos o nosso objetivo no campeonato nacional. Eu então tive a oportunidade de ir pro Recife que era um clube onde se jogava os melhores lugares do campeonato. Saí do Chapecoense em Dezembro de 2015.
Na noite de 28 a 29 de novembro de 2016, a minha esposa me acordou chorando muito. Eu logo percebi que alguma coisa séria tinha acontecido e foi quando ela me falou do acidente de avião dos jogadores do Chapecoense. No início, eles disseram que havia sobreviventes, então não pensei em algo tão sério, mas assim que liguei a TV e vi a notícia, percebi a gravidez do acidente e então foi um choque. Foi muito doloroso. Conhecia a maioria dos jogadores, diretores e jornalistas que estavam nesse avião.
Mais uma vez eu vejo outro sinal de Deus. Um mês e meio antes do acidente, o clube estava com problemas, eles queriam me recrutar outra vez e fizeram uma oferta para o Recife. Concordei em voltar porque eu gostava muito das pessoas do clube, mas o Recife acabou recusando. Um mês depois a tragédia aconteceu, e eu poderia estar no avião.
Estas são coisas que nos fazem pensar muito. Isto nos mostra que temos que aproveitar ao máximo os momentos que passamos com as pessoas que amamos, família, amigos, porque a qualquer momento tudo pode parar. Temos que valorizar mais as coisas simples da vida.
Dos três sobreviventes, eu só conhecia o Neto. 5 ou 6 dias após o acidente, enquanto os jornais ainda não sabiam que ele estava acordado, ele me enviou uma mensagem. Pouco tempo depois, a direção do clube me ligou e no final da conversa eles me ofereceram a oportunidade de voltar ao clube para ajudar a reconstruí-lo. Eu já tinha pensado sobre essa possibilidade e que caso eles me chamassem, eu não poderia dizer não. E portanto eu estava com uma proposta muito importante naquele momento, um novo desafio, no Qatar. Mas a escolha foi feita rapidamente e então eu mudei todos os meus planos.
Quando eu vi o Neto pela primeira vez, mais de dois meses após o acidente, abracei ele é claro, mas conversámos e brincámos de cara. Tivemos que nos esforçar ao máximo para restabelecer o relacionamento que tínhamos antes do acidente. Nós já tinhámos conversado e chorado muito no telefone e era hora de seguir em frente. O Neto é uma pessoa de muita fé. Hoje em dia ele viaja muito dentro do Brasil para contar a sua história, e como Deus sempre esteve presente em cada momento da sua vida, inclusive durante a tragédia.
Ele teve um sonho prémonitório alguns dias antes do acidente. No dia da viagem ele ligou para a sua esposa e lhe disse: “Eu não quero ir, não me sinto bem, não estou com um bom pressentimento”. Ele viajou mesmo assim saiu e rezou antes do avião decolar. Já no avião, perceberam que algo estava errado. Os motores se
desligaram e as luzes também. O avião estava a voar apenas enquanto pairava e, naquele momento, Neto começou a orar. É a última coisa que ele se lembra até acordar no hospital. Hoje em dia, o seu testemunho muda a vida de muitas pessoas e eu o respeito muito por isso.
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Quando voltamos à jogar novamente com a equipe foi muito difícil estar no mesmo vestiário, no mesmo centro de treino, no mesmo estádio onde eu vivi tantas coisas com todas as pessoas que nos deixaram. Somos três antigos jogadores que voltaram e com os 4 ou 5 outros jogadores que estavam feridos e então não participaram do acidente, tivemos a responsabilidade de orientar os recém-chegados e mostrar a alma do clube. É um clube onde a simplicidade é importante, com muitos valores humanos.
Gradualmente começámos a voltar a ter uma vida normal de vestiário. Foi necessário, não podíamos continuar a viver na tristeza. As pessoas que se foram serão sempre a razão pela qual estamos aqui hoje, mas devemos fazer o nosso melhor, restabelecer o bom humor, a alegria, para poder honrá-las. Nós atingimos a nossa missão, que era manter o clube na primeira divisão. Os três jogadores sobreviventes, o Jakson Follmann, o Alan Ruschel e o Helio Hermito Zampier Neto também integraram o vestiário ; O Alan é inclusive titular da equipe e, graças a Deus, eles voltaram a ser felizes, eles são mesmo às vezes os primeiros a tirar sarro no vestiário. Oramos, é claro, antes de cada jogo e às vezes o Neto ou o Alan vem conversar com a gente antes de uma partida, isso no toca muito e nos dá muita força.
Acho que fiz a escolha certa em ter voltado ao clube. Os valores deste mundo às vezes estão de cabeça para baixo. Eu acho que o que eu fiz foi normal. Não tem nada de excepcional. Eu escuto o meu coração e faço escolhas de acordo com a minha intuição, seguindo os meus princípios e crenças. Foi a escolha certa para mim e espero ajudar o clube ao máximo.